segunda-feira, 23 de maio de 2016

Boa Administração - "Up the Down Staircase" dos nossos dias

Boa Administração - "Up the Down Staircase" dos nossos dias

Up the down staircase” é o título do livro da escritora americana Bel Haufman, que conta a história de uma professora americana que veio ensinar a língua inglesa numa escola secundária de um dos bairros problemáticos de Nova Iorque. Chegou à escola na esperança de conseguir incutir nos seus alunos uma paixão pela literatura clássica. Todavia, a indiferença dos seus alunos, a incompetência dos seus colegas e a burocratização gritante de todo o sistema desencorajaram-na ao ponto de ponderar desistir ao fim do primeiro ano. O próprio título do livro é uma criação da burocracia escolar – trata-se da justificação da infração disciplinar que fora aplicada a um dos seus alunos – É que ele, incauto, decidiu subir as escadas que segundo o regulamento interno da escola só se destinavam para as pessoas descerem...

A nossa professora, de nome Sylvia Barrett, decide abandonar a função pública, refugiando-se num pequeno colégio privado até que é levada a mudar de ideias quando se apercebe de que conseguiu ter impacto nas vidas dos seus alunos, quebrando, embora de uma forma ainda muito ténue, o indiferente (em vez de imparcial) e burocrático (em vez de legal) tratamento que a escola pública lhes tinha destinado.

Ora, o princípio de boa administração é a Sylvia Barrett dos nossos dias e da nossa realidade. Vinda das boas famílias e de origens mais nobres (Afinal, o artigo 41º da Carta dos Direitos Fundamentais consagra a sua existência), veio à ordem jurídica portuguesa esperançada a conseguir ter impacto na vida dos sujeitos da relação jurídica administrativa. Esperança esta que se alicerçava na letra da lei: Proclamava o n.º2 do supra citado artigo que “todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável”.

O início era promissor.

Até que veio o primeiro solavanco, vindo do legislador português. É que o n.º1 do artigo 5.º do novo CPA veio optar por uma cláusula de tipo fechado ao reconduzir o princípio de boa-administração ao cumprimento, por parte da Administração, dos critérios de eficiência, economicidade e celeridade. O número dois do mesmo artigo veio “fechar” o domínio interpretativo do princípio ainda mais, ao estabelecer que para efeitos do disposto no número anterior, a Administração Pública deve ser organizada de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada.”

Assim, o legislador afirma que o presente princípio pauta a organização administrativa, não obstante estar localizado na Parte I (Disposições Gerais), Capítulo II (Princípios Gerais da Atividade Administrativa). Entendemos que a própria localização retira a força jurídica a este princípio.

À semelhança do que a Sylvia Barrett teve que enfrentar na escola pública durante um ano, também o princípio de boa administração encontrou uma resistência semelhante na redação que o legislador português deu ao princípio no artigo 5.º.

A doutrina também nem sempre é favorável às grandes inspirações do nosso princípio. Entende a mesma que os domínios de Eficiência, economicidade e celeridade que o artigo 5.º consagra são domínios não jurídicos, o que compromete a sua utilização por parte dos tribunais. Neste sentido pronunciaram-se, entre outros, o professor Mário Aroso de Almeida e o professor Diogo Freitas do Amaral. Esta posição não é nova e surgiu ainda na presença do antecessor do nosso princípio – do princípio da desburocratização e da eficiência que o CPA de 1991 consagrava.

Esta corrente doutrinária chega à conclusão de que, se é verdade que a decisão final quanto à violação ou não violação do princípio em causa terá um teor jurídico, o raciocínio que lhe é subjacente, atinente em saber qual a medida da eficiência que foi violada, qual o perímetro de economicidade ultrapassado, qual o grau de celeridade que seria exigível, consistirão em juízos de valor dificilmente compatíveis com o domínio funcional dos juízes administrativos, pois partirá de premissas pré-determinadas. Nesta medida, poderia ocorrer, por parte do juíz, a interferência em reservas da função administrativa salvaguardadas pela norma da separação dos poderes.

Mas, ao fim de um ano, o nosso princípio de boa administração também encontra razões para ficar no nosso ordenamento jurídico, pois afinal julgamos que conseguiu impacto na vida dos sujeitos da relação administrativa, tal como a professora Sylvia Barrett conseguiu ter na vida dos seus alunos.

Desde logo, o primado do Direito da União Europeia nos conduz a essa conclusão. É que a carta dos Direitos Fundamentais que citamos acima consagra o direito à boa administração como um direito fundamental dos cidadãos, vinculando a Administração Pública portuguesa a respeitar o direito comunitário e a garantir esse direito.

Reforçando a necessidade deste reconhecimento, o professor Vasco Pereira da Silva encara esta cláusula aberta do direito comunitário como necessária para concretizar o conceito de due process of law, que visa assegurar um amplo direito à defesa e consagrar o princípio do contraditório.

E é assim que chegámos ao final do primeiro ano de vigência – afinal, o princípio de boa administração conseguiu ter impacto na vida dos sujeitos da relação administrativa, impacto ainda ténue, ainda incipiente, mas promissor pelas suas potencialidades – A potencialidade de não esvaziar o seu próprio conteúdo nos outros deveres específicos autonomizados, a potencialidade de conseguir conviver lado ao lado com o princípio da separação dos poderes, a potencialidade de contribuir para que a Administração Pública seja capaz de subir mais um degrau na defesa dos direitos dos cidadãos com os quais se relaciona.

Vassili Plesov,

Aluno n.º 26.441


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