Boa Administração - "Up the Down Staircase" dos nossos dias
“Up
the down staircase” é o título do livro da escritora americana
Bel Haufman, que conta a história de uma professora americana que
veio ensinar a língua inglesa numa escola secundária de um dos
bairros problemáticos de Nova Iorque. Chegou à escola na esperança
de conseguir incutir nos seus alunos uma paixão pela literatura
clássica. Todavia, a indiferença dos seus alunos, a incompetência
dos seus colegas e a burocratização gritante de todo o sistema
desencorajaram-na ao ponto de ponderar desistir ao fim do primeiro
ano. O próprio título do livro é uma criação da burocracia
escolar – trata-se da justificação da infração disciplinar que
fora aplicada a um dos seus alunos – É que ele, incauto, decidiu
subir as escadas que segundo o regulamento interno da escola só se destinavam para as pessoas descerem...
A
nossa professora, de nome Sylvia Barrett, decide abandonar a função
pública, refugiando-se num pequeno colégio privado até que é
levada a mudar de ideias quando se apercebe de que conseguiu ter
impacto nas vidas dos seus alunos, quebrando, embora de uma forma
ainda muito ténue, o indiferente (em vez de imparcial) e burocrático
(em vez de legal) tratamento que a escola pública lhes tinha
destinado.
Ora,
o princípio de boa administração é a Sylvia Barrett dos nossos
dias e da nossa realidade. Vinda das boas famílias e de origens mais
nobres (Afinal, o artigo 41º da Carta dos Direitos Fundamentais
consagra a sua existência), veio à ordem jurídica portuguesa
esperançada a conseguir ter impacto na vida dos sujeitos da relação
jurídica administrativa. Esperança esta que se alicerçava na letra
da lei: Proclamava o n.º2 do supra
citado
artigo que “todas
as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas
instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e
num prazo razoável”.
O
início era promissor.
Até
que veio o primeiro solavanco, vindo do legislador português. É que
o n.º1 do artigo 5.º do novo CPA veio optar por uma cláusula de
tipo fechado ao reconduzir o princípio de boa-administração ao
cumprimento, por parte da Administração, dos critérios de
eficiência, economicidade e celeridade. O número dois do mesmo
artigo veio “fechar” o domínio interpretativo do princípio ainda mais, ao
estabelecer que “para
efeitos do disposto no número anterior,
a Administração Pública deve ser organizada de modo a aproximar
os serviços das populações e de forma não burocratizada.”
Assim,
o legislador afirma que o presente princípio pauta a organização
administrativa, não obstante estar localizado na Parte I
(Disposições Gerais), Capítulo II (Princípios Gerais da Atividade
Administrativa). Entendemos que a própria localização retira a
força jurídica a este princípio.
À
semelhança do que a Sylvia Barrett teve que enfrentar na escola
pública durante um ano, também o princípio de boa administração
encontrou uma resistência semelhante na redação que o legislador
português deu ao princípio no artigo 5.º.
A
doutrina também nem sempre é favorável às grandes inspirações
do nosso princípio. Entende a mesma que os domínios de Eficiência,
economicidade e celeridade que o artigo 5.º consagra são
domínios não jurídicos, o que compromete a sua utilização por
parte dos tribunais. Neste sentido pronunciaram-se, entre outros, o
professor Mário Aroso de Almeida e o professor Diogo Freitas do
Amaral. Esta posição não é nova e surgiu ainda na presença do
antecessor do nosso princípio – do princípio da desburocratização
e da eficiência que o CPA de 1991 consagrava.
Esta
corrente doutrinária chega à conclusão de que, se é verdade que a
decisão final quanto à violação ou não violação do princípio
em causa terá um teor jurídico, o raciocínio que lhe é
subjacente, atinente em saber qual a medida da eficiência que foi
violada, qual o perímetro de economicidade ultrapassado, qual o grau
de celeridade que seria exigível, consistirão em juízos de valor
dificilmente compatíveis com o domínio funcional dos juízes
administrativos, pois partirá de premissas pré-determinadas. Nesta
medida, poderia ocorrer, por parte do juíz, a interferência em
reservas da função administrativa salvaguardadas pela norma da
separação dos poderes.
Mas,
ao fim de um ano, o nosso princípio de boa administração também
encontra razões para ficar no nosso ordenamento jurídico, pois
afinal julgamos que conseguiu impacto na vida dos sujeitos da relação
administrativa, tal como a professora Sylvia
Barrett conseguiu ter na vida dos seus alunos.
Desde
logo, o primado do Direito da União Europeia nos conduz a essa
conclusão. É que a carta dos Direitos Fundamentais que citamos
acima consagra o direito à boa administração como um direito
fundamental dos cidadãos, vinculando a Administração Pública
portuguesa a respeitar o direito comunitário e a garantir esse
direito.
Reforçando a necessidade deste reconhecimento, o professor Vasco Pereira da Silva encara esta
cláusula aberta do direito comunitário como necessária para
concretizar o conceito de due
process of law,
que visa assegurar um amplo direito à defesa e consagrar o princípio
do contraditório.
E é assim que chegámos ao final
do primeiro ano de vigência – afinal, o princípio de boa
administração conseguiu ter impacto na vida dos sujeitos da relação
administrativa, impacto ainda ténue, ainda incipiente, mas promissor
pelas suas potencialidades – A potencialidade de não esvaziar o
seu próprio conteúdo nos outros deveres específicos autonomizados,
a potencialidade de conseguir conviver lado ao lado com o princípio
da separação dos poderes, a potencialidade de contribuir para que a
Administração Pública seja capaz de subir mais um degrau na defesa
dos direitos dos cidadãos com os quais se relaciona.
Vassili Plesov,
Aluno n.º 26.441
Sem comentários:
Enviar um comentário