quarta-feira, 23 de março de 2016

Parte III - Análise histórico-cultural do Direito administrativo em França e na Grã-Bretanha





Os modelos de Administração Pública francesa e britânica durante o Estado liberal

Nós analisámos nesta viagem histórica dois modelos de Direito administrativo que existiram no passado e que ainda hoje existem na actualidade, embora a evolução que sofreram os tenha aproximado. Os modelos são: de um lado o sistema francês (de que já falámos) e o modelo britânico, que correspondem a dois modelos autónomos quanto ao modo de conceber a Administração; quando ao modo de a regular e quanto ao modo de a entender. E a primeira coisa que é preciso dizer é que, a primeira apreciação que vamos fazer aos dois sistemas tem a ver com a contraposição histórica e aí, no início, quando surgiu o Direito administrativo após a Revolução Francesa (e a sequência de todos aqueles “traumas” que já estudámos). Nessa altura em 1789, no período da revolução, os dois sistemas eram antagónicos; apresentavam características que os separavam um do outro ao ponto de se poder dizer, que havia dois modelos de liberalismo no quadro da Europa e que esses dois modelos liberais davam origem a dois sistemas administrativos diferentes.

Para fazer Direito comparado, há que saber o que se vai comparar. Eu diria que há três realidades que permitem comparar, quer historicamente, quer na actualidade, o sistema francês e o sistema britânico. Em primeiro lugar, temos que saber qual é a lei aplicável; saber se há um Direito aplicável à Administração ou não. A segunda questão é saber se a Administração tem poderes especiais quando comparada com os privados. E a terceira e última questão é saber qual é o tribunal competente para julgar as actuações da Administração. Estas três perguntas são essenciais. Ainda há quem lhes acrescente uma quarta: Marcelo Rebelo de Sousa e Freitas do Amaral, que são a «descentralização» e a «desconcentração» como realidades… por um lado, a descentralização no caso francês e por outro lado, a descentralização e a desconcentração no caso britânico. Mas esta característica não tem directamente a ver com a nossa disciplina de Direito Administrativo II, tem a ver com a organização administrativa já estudada no 1º semestre [Direito Administrativo I].

Há ou não normas que regulam a actividade da Administração? O sistema francês nasceu com a afirmação da necessidade de criar normas para proteger a Administração, para lhe dar um estatuto privilegiado (já vimos que é um dos “traumas de uma infância difícil”). Pelo contrário, no sistema britânico a Administração devia estar submetida à “common law”, ao Direito comum; ao Direito que era segregado, quer pela tradição e pelo costume, quer pela jurisprudência. Portanto, isso vai marcar uma filosofia diferente quanto ao modo de actuar da Administração em França e no Reino Unido da Grã-Bretanha. Em França a Administração impõe; pratica actos administrativos com autoridade; no sistema anglo-saxónico a Administração habitua-se a negociar e isso tem consequências quanto às formas de actuação. Enquanto na lógica francesa se vai privilegiar os «actos e os regulamentos administrativos»; na lógica anglo-saxónica vai-se privilegiar a ideia da «negociação». Em termos actuais é comum pegar num manual de Direito administrativo dos Estados Unidos e quando aparece nas primeiras páginas sobre a Administração e evolução administrativa, aparece muitas vezes a expressão “administration is business”, a Administração é um negócio como os outros. O Estado, a Administração Pública tem que negociar com os particulares nas condições mais adequadas e mais rentáveis para a satisfação do interesse público. Portanto, temos aqui uma realidade que marca uma diferença de raíz entre os dois modelos. 

Para os britânicos e norte-americanos, a Administração Pública é um negócio como qualquer outro.

Mas essa realidade vai estar associada a uma outra, que é a questão de se saber se a Administração goza de autotutela ou de exotutela; a questão de se saber se a Administração tem poderes para executar as suas decisões (que é o que acontece no sistema francês, um «sistema de autotutela» em que a Administração tem, segundo a lei, poderes para impor as suas decisões) ou se pelo contrário, como sucede no sistema britânico, a Administração não pode impor as suas decisões, não pode executá-las contra a vontade dos particulares, o que significa, das duas, uma: ou os particulares cumprem voluntariamente o que a Administração lhes propõe ou é preciso ir a Tribunal para obter a execução jurisdicional daquela actuação administrativa. Curiosamente, isso não significa como chegou a ser dito, naquela lógica “traumática” de quem não é capaz de entender aquilo que se passa na casa do vizinho; Maurice Hauriot chegou a dizer que a Administração britânica era completamente ineficaz, porque «para apagar um fogo era preciso ir primeiro ao tribunal». Desde logo, essa situação do fogo é uma situação de «estado de necessidade» portanto, mesmo um particular pode actuar, mas mais do que isso, a lógica administrativa britânica não foi entendida por Maurice Hauriot, porque na Grã-Bretanha, a Administração não deixa de impor decisões e não deixa de praticar actos administrativos bilaterais. O que acontece é que, se os particulares cumprirem voluntariamente esses actos, não há problema; se os particulares se recusarem a cumprir, então não há poder de execução coerciva é preciso ir a tribunal.

Não significa isto, contrariamente ao que diz o professor Freitas do Amaral, que: “o sistema implica a jurisdicionalização; a intervenção judicial ou a autorização judicial para actuar”. A Administração antes de actuar não precisa de pedir nada a ninguém. A Administração actua. Só precisará de ir a tribunal se depois, no momento da execução, os particulares se opuserem a essa execução; se os particulares cumprirem voluntariamente a imposição é cumprida e é isso que acontece na maior parte dos casos na vida administrativa. Nos outros casos, basta a ordem, basta o acto administrativo para que o particular voluntariamente cumpra aquilo que a Administração lhes diz e isso é o que acontece no sistema britânico em termos tradicionais.

Por último, na França, pelas razões que já sabemos: aqueles “traumas” de uma infância difícil, proibiram os tribunais comuns de interferir na esfera da Administração Pública e isso levou à criação de um juiz “doméstico”, de um juiz privativo da Administração que correspondia à lógica da promiscuidade entre Administração e justiça (a tal lógica do “pecado original” de que já falámos). E portanto, isto levou à criação de um tribunal especial que no princípio era mesmo um órgão da Administração. Era a lógica do «administrador-juiz». Pelo contrário, a lógica britânica; a lógica anglo-saxónica, foi a de afirmar que o «juiz comum» aplicaria o Direito comum e julgaria a Administração. Não havia nenhuma limitação a esta intervenção do juiz.

As razões desta realidade diferente prendem-se também com as circunstâncias históricas. Quando falámos na revolução francesa, que estava por detrás daquela visão do Estado liberal e da separação de poderes. Essa visão francesa tinha a ver com o conceito de Estado por detrás da Administração: o Estado todo-poderoso não aceita limitações, ora esta ideia de Estado é um ideia do Continente europeu. O Estado foi “inventado” por dei Machiavelli; depois tornou-se soberano com Jean Bodin; depois veio o Estado absoluto, mas tudo isto aconteceu no continente. Nas ilhas, a tradição da lógica autoritária, se quiserem, do rei absoluto para a Monarquia liberal, fez-se sem rupturas no quadro da tradição e portanto, sem que tenha sido utilizado qualquer conceito de Estado. O conceito de Estado só é utilizado em Inglaterra no séc. XX e por comparação com o continente europeu. Aliás, a teorização de Locke e de Montesquieu é diferente. Montesquieu integra os poderes no Estado e fala dos poderes do Estado; Locke, considera que os poderes são autónomos e interdependentes e se são autónomos e interdependentes, podem-se controlar uns aos outros. Esta realidade histórica da ruptura francesa com a afirmação do Estado e da continuidade da tradição britânica que não precisou do Estado, explica porque é que no séc. XVIII e no séc. XIX há dois modelos de liberalismo. E no séc. XVIII e no séc. XIX, estas características introduzem uma diferenciação absoluta entre estes dois modelos. Só que, as coisas vão mudar e vão mudar muito rapidamente. 

Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689-1755) filósofo iluminista; político e jurista francês.

Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social, com o surgimento da «Administração prestadora»; do ponto de vista da lei, o que vai suceder é que no Reino Unido da Grã-Bretanha vão surgir leis emanadas do Parlamento que regulam o modo como a Administração deve actuar para satisfazer as necessidades colectivas. Não é a tradição nem a jurisprudência que vão dar essas indicações. É preciso, não apenas a criação de entidades administrativas como é preciso regular o modo de exercício da sua actividade. Portanto, logo no início do séc. XX surge em Inglaterra o Direito administrativo. Vem naquela contraposição analfabeta que se manteve durante muito tempo, quando quem fala não faz Direito comparado e não sabe nada de Direito Comparado. Dizia-se em pleno séc. XX, que “a Inglaterra nunca teve Direito administrativo”, o que era um disparate, porque a Inglaterra teve no início do século, que criar normas especiais para a Administração; há normas de Direito administrativo, precisamente porque foi preciso regular aquilo que é novo e que corresponde à dimensão «prestadora» da Administração. Portanto, isto fez com que os dois sistemas [francês e britânico] se aproximassem.

Podemos dizer que, quantitativamente o peso da lei pode ser maior no sistema francês do que no sistema britânico. Mas hoje em dia, não podemos dizer que essa característica possa parecer desprovida de uma contraposição enquanto tal. Depois, se entrarem na “London School of Economics” [a Escola de Economia e Ciência Política de Londres], há uma disciplina de Direito Administrativo desde 1904. Portanto, desde o início do século que em Inglaterra se estuda Direito administrativo. 


A aproximação do sistema britânico ao sistema francês


Ora bem, no que respeita aos poderes também vai haver transformações e elas decorrem de ambos os lados. No sistema britânico, o surgimento das tais leis que regulam a Administração Pública, vão criar «órgãos especiais» que têm em determinadas condições definidas na lei, «poderes de autotutela», são os chamados “tribunals”, os “administrative tribunals”. Chamo à atenção, que estou a falar em “tribunals” (1) não em “Courts”; estou a falar em órgãos da Administração não estou a falar em Tribunais. Os “tribunals” não são “Courts”, são órgãos administrativos especiais que em determinadas matérias; em determinados domínios gozam de poderes de autotutela das decisões. E portanto, mesmo no sistema britânico, vão surgir a partir do séc. XX estes órgãos administrativos especiais que exercem estes poderes de autotutela. É muito curioso, que o sistema britânico tenha nascido sem sombra de “pecado”; não tinha tido o “pecado original” do séc. XVIII e XIX, agora no séc. XX vai cair no mesmo “trauma” do sistema francês, porque estes “tribunals” são realidades em que se mistura o poder administrativo e o poder judicial. São órgãos administrativos a quem se atribui, não apenas poderes de autotutela, mas também poderes dos Tribunais. A Administração passa também a julgar procedimentos…O sistema britânico tinha nascido tão bem, tinha crescido tão bem, mas depois há esta realidade promíscua. No fundo, os problemas são os mesmos, mas as respostas são diferentes. Se pegarem num manual de Direito Administrativo, estes “tribunals” são caracterizados como “something, between the world of justice, and the world of Administration”; como qualquer coisa, entre o mundo da Administração e o mundo da justiça. É o “pecado original” do Direito administrativo. 

Logótipo oficial dos "tribunals" na Grã-Bretanha cuja divisa é: "Dieu et mon droit" / Deus e o meu direito.

Enquanto na lógica francesa isso correspondia a uma dimensão genérica…É verdade também, que as transformações que se deram no sistema francês, por ironia do destino, se vão manifestar no sistema britânico, enquanto em França os tribunais se vão transformando em verdadeiros Tribunais. No quadro da lógica do Reino Unido da Grã-Bretanha, estes poderes de autotutela existem apenas quando a lei os atribui e em termos limitados e curiosamente, o que vai acontecer nesta fase (nas fases da evolução do sistema, no Estado Social havia uma fase de jurisdicionalização) e numa primeira reacção pode dizer-se: -“mas aconteceu o contrário no sistema britânico”. Não, não aconteceu o contrário, ou seja, efectivamente no início do século surgiram estes órgãos, mas simultaneamente vai surgir a ideia de que estes órgãos não têm a última palavra no julgamento administrativo e vai surgir a ideia de que a última palavra deve ser da Administração. Se no início dos anos de 1920/30 há alguns problemas no quadro da realidade britânica, a partir dos anos de 1940/50, torna-se manifestamente evidente que os “tribunals” não podem ter a última palavra. A última palavra deve ser dos “lords”.

Há até uma campanha nos anos de 1970, quando se dá a constitucionalização dos modelos, e na Grã-Bretanha há uma Constituição material, em que o Governo de sua majestade vai fazer uma campanha para os órgãos da Administração, dizendo que a Constituição impõe que o juiz controle a Administração… A ideia é a de que, a Administração não tem a última palavra, nem mesmo os “tribunals” têm a última palavra. A última palavra cabe aos Tribunais [“Courts”]. 

E portanto, este movimento de jurisdicionalização que acontece em simultâneo na Grã-Bretanha e na França vai criar esta realidade que introduz a limitação dos poderes de autotutela e a limitação dos poderes de julgamento. É preciso ter em atenção, que a passagem do Estado Liberal para o Estado Social no Reino Unido da Grã-Bretanha trouxe uma aproximação ao sistema francês. Mas, também no sistema francês onde a exigência é cada vez maior do «princípio da legalidade» vai levar à afirmação de que, a lei tem de prever e tem de regular, tanto os poderes de decisão, como os poderes de natureza executiva. Portanto, a essa maior exigência da legalidade vai por em causa a ideia do «privilégio de execução prévia» (como vimos na aula passada), nem a Administração tem o privilégio de execução prévia, apenas tem os poderes que a lei expressamente lhe atribui; nem os actos administrativos gozam necessariamente de força coerciva: há uns que não podem gozar, porque por natureza são favoráveis; há outros que não gozam, porque a lei não permite a sua execução coerciva. Isto também produziu uma aproximação dos dois sistemas.

"Hause of Lords", a Câmara dos Lordes do Parlamento britânico, como os "lords jurisdictions" que têm poderes de supremo tribunal administrativo.

Isto vem mostrar como apesar das circunstâncias históricas; apesar da realidade ser diferente de um lado e do outro, há também uma realidade comum que é: faz sentido colocar as mesmas perguntas perante todos os países e portanto, sem se fazer Direito Comparado não se pode saber Direito. É Goethe que diz no seu “Werther”: «Ninguém sabe a sua língua quando não conhece outra língua como a sua. E para saber a sua língua tem que saber outras línguas», isto é mais evidente para o Direito (2). Quem só conhece o seu próprio Direito, não conhece o Direito. É preciso fazer Direito comparado e perceber a lógica das coisas (3).


A organização judicial administrativa britânica e espanhola


Estes “tribunals” podiam fazer julgamentos mas não eram Tribunais e a última palavra cabia ao juiz. O facto de a última palavra caber ao juiz, levou à criação de um meio processual que apreciava as decisões dos “tribunals” e portanto, isso vai dar origem ao “sofrimento” do contencioso administrativo e levou a que se caminhasse para uma especialização dos tribunais administrativos. O que surgiu no Reino de Sua Majestade foi que, na 1ª instância se foram concentrando os julgamentos dos litígios no “Administrative Court” [Tribunal Administrativo]. Começou por se chamar, “High Court of Justice” [Alto Tribunal de Justiça] depois, “Her Majesty's High Court of Justice” [Alto Tribunal de Justiça de Sua Majestade] e hoje é o “Administrative Court”. E portanto, hoje em dia, aquela que era a última diferença entre o sistema francês e o sistema britânico também se esvaneceu, o que não significa que não tenha havido nenhuma diferença. É que, no quadro da lógica anglo-saxónica só existe esta especialização ao nível da 1ª instância; ao nível dos tribunais que vão julgar pela primeira vez os litígios administrativos. Depois, se houver um recurso para um tribunal superior, aí já será o tribunal comum. Não há distinção entre os litígios administrativos e os outros litígios, tal como no topo, o “Lords Jurisdiction” da Câmara dos Lordes do Parlamento, que é o supremo tribunal britânico e que vão julgar em última instância todos as decisões. Portanto, há especialização na base mas no topo há unidade. A Grã-Bretanha tem uma unidade jurisdicional.

Pelo contrário, no sistema francês, como é o caso da realidade portuguesa; espanhola; italiana e alemã, temos uma ordem autónoma dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos dos artigos, 209º e seguintes da Constituição da República Portuguesa, aparecem os Tribunais Administrativos e Fiscais. Isto significa que - há especialização da base até ao topo -. Mas se esta é a maior das diferenças nos dias de hoje, o que é facto, é que a realidade tendeu a esbater muitas das diferenças que existiram no passado. Se olharmos para Espanha, que teoricamente tem um sistema francês e que acompanhou toda a evolução dos países latinos; a Espanha em vez de criar um supremo tribunal administrativo, criou uma Câmara Administrativa para o contencioso administrativo no Supremo Tribunal de Espanha. 


A importância do Direito Administrativo Comparado


Hoje em dia e nos últimos trinta anos, não há nenhum investigador de Direito Administrativo que não diga, que é essencial estudar Direito Comparado, porque é preciso entender, não só como nasceram as nossas instituições, mas como elas se relacionam e qual a sua evolução e para isso é preciso comparar as realidades. Curiosamente no início, Otto Mayer, comparou. Ele só escreveu sobre o Direito Administrativo Alemão, o “Deutsches Verwaltungsrecht”, depois de ter escrito sobre a teoria do Direito administrativo francês e curiosamente, na abertura do Direito alemão, ele diz o seguinte: -“Eu se calhar ainda não sei muito sobre o Direito francês. Se calhar devia estudar mais um bocadinho, mas está na altura de criar o Direito alemão, seja o que Deus quiser”. Esta ideia que antes de se escrever alguma coisa, precisamos de fazer Direito Comparado foi importante no início e é cada vez mais importante. A comparação é essencial.

Falámos sobre as grandes reformas que aconteceram nos outros países da Europa no contencioso administrativo e sobre a tutela cautelar. Isso por um lado, foi o resultado da influência da União Europeia e por outro lado, deve-se à existência da comparação. Em Portugal, tivemos nesta Faculdade de Direito da ULisboa, professores alemães; franceses e espanhóis a discutir o nosso Código do Processo Administrativo e eu estive com eles na Alemanha; na Itália e na França, tal como os meus colegas estiveram em vários sítios do mundo e é precisamente essa dimensão comparada que permitiu que, apesar das diferenças (a ideia não é acabar com as diferenças). O Direito tem que ser diferente, adequado e adaptar-se a cada sociedade, segundo a máxima de Aristóteles. Temos de entender quais as bases dessa realidade e temos de entender essa dimensão e o Direito comparado pode servir como fonte do Direito, porque na União Europeia, estabelece nas regras do Tribunal de Justiça, que os princípios da UE são, para além dos «princípios dos tratados», os «princípios comuns» aos diferentes países. E por portanto, temos que saber quais são os princípios do Direito dos outros países europeus para saber qual é a norma aplicável.

Para além dessa dimensão comparada, nos dias de hoje há também uma outra dimensão, que é a dimensão global. O Direito administrativo global é última invenção… Estudar Direito global é uma coisa muito importante hoje. Não sei se já repararam que o Direito Internacional Público, que regula as relações entre Estados [Estados-nações soberanos] começou recentemente por dizer, que as normas podiam aplicar-se directamente aos cidadãos e se isso acontecer, essas normas deixam de ser internacionais [entre Estados-nações] e passam a ser problemas de Direito administrativo; de Direito constitucional e por aí adiante. Porque a lógica tradicional é: cada Estado aplica aquilo que negoceia, e se os outros cumprem ou não é um problema da responsabilidade de cada Estado. Era a lógica da Administração Pública, mas se, se disser que se aplica aos cidadãos e que os cidadãos podem por em causa o seu próprio Estado, isto significa que as questões constitucionais, por exemplo, além de terem uma dimensão europeia têm uma dimensão global…Há um fenómeno de constitucionalismo global. O que tem acontecido nos tratados contemporâneos é que surgem muitos órgãos semelhantes ao antigo Conselho de Estado francês: meio administrativos, meio judiciais. E esses órgãos têm poderes de julgamento e julgam de acordo com o Direito Administrativo.


Um caso famoso, que é o “Caso das Tartarugas e das Gambas” [The Shrimp-Turtle Case] que ocorreu entre a Índia e os Estados Unidos da América e que resulta da proibição de importação de gambas pelos EUA e que eram pescadas no Japão, com o argumento de que os japoneses não protegiam tartarugas. Se este caso fosse tratado como um caso de Direito internacional, quanto muito havia responsabilidade civil entre os EUA e a Índia, mas primeiro que o caso fosse determinado por uma qualquer entidade judicial, acabava por desaparecer o conflito. Mas se houvesse uma necessidade criada pelos tratados com poderes para decidir este caso, ele seria decidido de acordo com as regras do Direito administrativo…A sentença que resolveu este caso, é uma sentença de Direito Administrativo Global, é um conflito internacional que é resolvido pelas regras do Direito administrativo e isto é o “pão-nosso de cada dia” nos dias de hoje; quer no domínio do ambiente, quer no domínio de outras realidades como o consumo; como na realidade económica no âmbito do “GATT, General Agreement on Tariffs and Trade", o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, há uma série de casos de Direito administrativo e portanto, o último “grito da moda” é estudar Direito Administrativo.

Há também outra dimensão que é a dimensão europeia, porque a União Europeia é uma «Comunidade de Direito Administrativo» e tem também uma Constituição material, mas a UE não é apenas uma realidade internacional é uma realidade interna, tem uma «ordem jurídica própria» e essa ordem jurídica prevalece e mistura-se com as ordens jurídicas dos Estados membros e não é Direito internacional é Direito interno. Aquilo que se passa no interior da UE é que as suas normas são normas de Direito administrativo. Portanto, há um fenómeno novo do ponto de vista do Direito administrativo e essa realidade sem fronteiras é o que tem obrigado a doutrina do Direito administrativo a repensar fora do quadro tradicional.  


Fonte: aula de Direito Administrativo II; professor doutor Vasco Pereira da Silva; in - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Transcrito e publicado por: Marco Bemposta, aluno nº 26495. 


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Anotações
 
(1) Os "tribunals" são uma espécie de «audiências legais ou judiciais». Existem diversos litígios nos "tribunals" britânicos que têm os seus próprios processos e regras relativamente informais se comparados aos "courts" [Tribunais] e também integram juízes que julgam casos de imigração; asilo e segurança social. In - "Courts and Tribunals Judiciary; Governo britânico; 2016.

(2) O professor doutor Vasco Pereira da Silva faz uma analogia entre a Linguística e o Direito com uma citação de Goethe, da obra literária, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”. O romance é escrito na primeira pessoa e com poucas personagens. Tem uma linguagem rebuscada e muito complicada de ser compreendida. Após a sua primeira publicação em 1774, teria ocorrido na Europa uma onda de suicídios, atribuída à influência do personagem de Goethe, e que foi chamado de «efeito Werther». No entanto, esse impacto do romance sobre o número de suicídios nunca foi demonstrado. Apenas mais recentemente foram realizadas tentativas científicas de examinar a existência desse possível «efeito de Werther». In - “Efeito de Werther”; Ana Filipa Almeida - Análise Psicológica - (2000), 1 (XVIII): 37-51.
    A propósito da citação de Goethe, não resisto a acrescentar um comentário jurídico e simultâneamente linguístico, e que é o seguinte: é lamentável que nós portugueses tenhamos uma atitude passiva (os que a têm, sobretudo com responsabilidade na cultura ou na política) sobre a diluição progressiva da nossa Língua Portuguesa, com a imposição atentatória da identidade cultural portuguesa e inconstitucional, como afirma e escreve o professor Ivo Barroso, com esta adopção ditatorial e anti-científica de um "acordo" pseudo-ortográfico  com que «o órgão superior da Administração Pública», o Governo, “obriga” a comunidade dos seus funcionários a abandonar a escrita e língua que lhes ensinaram e aprenderam na escola, devido a um “acordo” que não existe, pois não houve convenção; que nem sequer é “ortográfico”, pois consiste no oposto da Ortografia que é «escrever correctamente as palavras de uma língua» e que apenas Portugal insiste em aplicar. A «evolução» ortográfica não pode confundir-se com a actual «degradação ortográfica» e que afecta até a língua falada em certos casos.
    Acrescento ainda, que do ponto de vista do Direito, a língua, o idioma, é uma «ferramenta jurídico-interpretativa» e as palavras têm em termos jurídicos grande relevância. Porque não suprimimos também as letras “inúteis” da língua inglesa, da alemã ou da francesa? Porque será que os britânicos [por exemplo] membros da “Commonwealth”, mas que segundo as regras do acordês devia escrever-se talvez: «Comonuelte» ou «Joane Volfegangue vone Goute» em vez de Johann Wolfgang von Goethe]. Porque será que outros países mais avançados em termos científicos e no bem-estar social, não copiam este - grande disparate - (para usar uma expressão do professor Vasco Pereira da Silva) que alguns de nós insistem em manter e tolerar quando é verdadeiramente intolerável? Mais argumentos técnicos de peso se podiam acrescentar nesta matéria. Marco Bemposta, aluno do 2º ano da licenciatura em Direito; in - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; 2016.

(3) O professor doutor Vasco Pereira da Silva avisa que em alguns manuais de Direito Administrativo da actualidade, é escrito que não há tribunais administrativos na Grã-Bretanha, mas eles existem. Isto deve-se à falta do Direito Comparado, várias vezes referido em algumas passagens deste texto.  

Por: Marco Bemposta, aluno nº 26495.