Os modelos de Administração Pública
francesa e britânica durante o Estado liberal
Nós
analisámos nesta viagem histórica dois modelos de Direito administrativo que
existiram no passado e que ainda hoje existem na actualidade, embora a evolução
que sofreram os tenha aproximado. Os modelos são: de um lado o sistema francês
(de que já falámos) e o modelo britânico, que correspondem a dois modelos
autónomos quanto ao modo de conceber a Administração; quando ao modo de a
regular e quanto ao modo de a entender. E a primeira coisa que é preciso dizer
é que, a primeira apreciação que vamos fazer aos dois sistemas tem a ver com a
contraposição histórica e aí, no início, quando surgiu o Direito administrativo
após a Revolução Francesa (e a sequência de todos aqueles “traumas” que já
estudámos). Nessa altura em 1789, no período da revolução, os dois sistemas
eram antagónicos; apresentavam características que os separavam um do outro ao
ponto de se poder dizer, que havia dois modelos de liberalismo no quadro da
Europa e que esses dois modelos liberais davam origem a dois sistemas
administrativos diferentes.
Para
fazer Direito comparado, há que saber o que se vai comparar. Eu diria que há
três realidades que permitem comparar, quer historicamente, quer na
actualidade, o sistema francês e o sistema britânico. Em primeiro lugar, temos
que saber qual é a lei aplicável; saber se há um Direito aplicável à
Administração ou não. A segunda questão é saber se a Administração tem poderes
especiais quando comparada com os privados. E a terceira e última questão é
saber qual é o tribunal competente para julgar as actuações da Administração.
Estas três perguntas são essenciais. Ainda há quem lhes acrescente uma quarta:
Marcelo Rebelo de Sousa e Freitas do Amaral, que são a «descentralização» e a
«desconcentração» como realidades… por um lado, a descentralização no caso
francês e por outro lado, a descentralização e a desconcentração no caso
britânico. Mas esta característica não tem directamente a ver com a nossa
disciplina de Direito Administrativo II, tem a ver com a organização
administrativa já estudada no 1º semestre [Direito Administrativo I].
Há
ou não normas que regulam a actividade da Administração? O sistema francês
nasceu com a afirmação da necessidade de criar normas para proteger a
Administração, para lhe dar um estatuto privilegiado (já vimos que é um dos
“traumas de uma infância difícil”). Pelo contrário, no sistema britânico a
Administração devia estar submetida à “common law”, ao Direito comum; ao
Direito que era segregado, quer pela tradição e pelo costume, quer pela
jurisprudência. Portanto, isso vai marcar uma filosofia diferente quanto ao
modo de actuar da Administração em França e no Reino Unido da Grã-Bretanha. Em
França a Administração impõe; pratica actos administrativos com autoridade; no
sistema anglo-saxónico a Administração habitua-se a negociar e isso tem
consequências quanto às formas de actuação. Enquanto na lógica francesa se vai
privilegiar os «actos e os regulamentos administrativos»; na lógica
anglo-saxónica vai-se privilegiar a ideia da «negociação». Em termos actuais é
comum pegar num manual de Direito administrativo dos Estados Unidos e quando
aparece nas primeiras páginas sobre a Administração e evolução administrativa,
aparece muitas vezes a expressão “administration is business”, a Administração
é um negócio como os outros. O Estado, a Administração Pública tem que negociar
com os particulares nas condições mais adequadas e mais rentáveis para a
satisfação do interesse público. Portanto, temos aqui uma realidade que marca
uma diferença de raíz entre os dois modelos.
Para os britânicos e norte-americanos, a Administração Pública é um negócio como qualquer outro. |
Mas
essa realidade vai estar associada a uma outra, que é a questão de se saber se
a Administração goza de autotutela ou de exotutela; a questão de se saber se a
Administração tem poderes para executar as suas decisões (que é o que acontece
no sistema francês, um «sistema de autotutela» em que a Administração tem,
segundo a lei, poderes para impor as suas decisões) ou se pelo contrário, como
sucede no sistema britânico, a Administração não pode impor as suas decisões,
não pode executá-las contra a vontade dos particulares, o que significa, das
duas, uma: ou os particulares cumprem voluntariamente o que a Administração lhes
propõe ou é preciso ir a Tribunal para obter a execução jurisdicional daquela
actuação administrativa. Curiosamente, isso não significa como chegou a ser
dito, naquela lógica “traumática” de quem não é capaz de entender aquilo que se
passa na casa do vizinho; Maurice Hauriot chegou a dizer que a Administração
britânica era completamente ineficaz, porque «para apagar um fogo era preciso ir
primeiro ao tribunal». Desde logo, essa situação do fogo é uma situação de
«estado de necessidade» portanto, mesmo um particular pode actuar, mas mais do
que isso, a lógica administrativa britânica não foi entendida por Maurice
Hauriot, porque na Grã-Bretanha, a Administração não deixa de impor decisões e
não deixa de praticar actos administrativos bilaterais. O que acontece é que,
se os particulares cumprirem voluntariamente esses actos, não há problema; se
os particulares se recusarem a cumprir, então não há poder de execução coerciva
é preciso ir a tribunal.
Não
significa isto, contrariamente ao que diz o professor Freitas do Amaral, que:
“o sistema implica a jurisdicionalização; a intervenção judicial ou a
autorização judicial para actuar”. A Administração antes de actuar não precisa
de pedir nada a ninguém. A Administração actua. Só precisará de ir a tribunal se
depois, no momento da execução, os particulares se opuserem a essa execução; se
os particulares cumprirem voluntariamente a imposição é cumprida e é isso que
acontece na maior parte dos casos na vida administrativa. Nos outros casos, basta
a ordem, basta o acto administrativo para que o particular voluntariamente
cumpra aquilo que a Administração lhes diz e isso é o que acontece no sistema
britânico em termos tradicionais.
Por
último, na França, pelas razões que já sabemos: aqueles “traumas” de uma
infância difícil, proibiram os tribunais comuns de interferir na esfera da
Administração Pública e isso levou à criação de um juiz “doméstico”, de um juiz
privativo da Administração que correspondia à lógica da promiscuidade entre
Administração e justiça (a tal lógica do “pecado original” de que já falámos).
E portanto, isto levou à criação de um tribunal especial que no princípio era
mesmo um órgão da Administração. Era a lógica do «administrador-juiz». Pelo
contrário, a lógica britânica; a lógica anglo-saxónica, foi a de afirmar que o
«juiz comum» aplicaria o Direito comum e julgaria a Administração. Não havia
nenhuma limitação a esta intervenção do juiz.
As
razões desta realidade diferente prendem-se também com as circunstâncias
históricas. Quando falámos na revolução francesa, que estava por detrás daquela
visão do Estado liberal e da separação de poderes. Essa visão francesa tinha a
ver com o conceito de Estado por detrás da Administração: o Estado
todo-poderoso não aceita limitações, ora esta ideia de Estado é um ideia do
Continente europeu. O Estado foi “inventado” por dei Machiavelli; depois
tornou-se soberano com Jean Bodin; depois veio o Estado absoluto, mas tudo isto
aconteceu no continente. Nas ilhas, a tradição da lógica autoritária, se
quiserem, do rei absoluto para a Monarquia liberal, fez-se sem rupturas no
quadro da tradição e portanto, sem que tenha sido utilizado qualquer conceito
de Estado. O conceito de Estado só é utilizado em Inglaterra no séc. XX e por
comparação com o continente europeu. Aliás, a teorização de Locke e de
Montesquieu é diferente. Montesquieu integra os poderes no Estado e fala dos
poderes do Estado; Locke, considera que os poderes são autónomos e
interdependentes e se são autónomos e interdependentes, podem-se controlar uns
aos outros. Esta realidade histórica da ruptura francesa com a afirmação do
Estado e da continuidade da tradição britânica que não precisou do Estado,
explica porque é que no séc. XVIII e no séc. XIX há dois modelos de
liberalismo. E no séc. XVIII e no séc. XIX, estas características introduzem
uma diferenciação absoluta entre estes dois modelos. Só que, as coisas vão
mudar e vão mudar muito rapidamente.
Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689-1755) filósofo iluminista; político e jurista francês. |
Com
a transição do Estado Liberal para o Estado Social, com o surgimento da
«Administração prestadora»; do ponto de vista da lei, o que vai suceder é que
no Reino Unido da Grã-Bretanha vão surgir leis emanadas do Parlamento que
regulam o modo como a Administração deve actuar para satisfazer as necessidades
colectivas. Não é a tradição nem a jurisprudência que vão dar essas indicações.
É preciso, não apenas a criação de entidades administrativas como é preciso
regular o modo de exercício da sua actividade. Portanto, logo no início do séc.
XX surge em Inglaterra o Direito administrativo. Vem naquela contraposição analfabeta
que se manteve durante muito tempo, quando quem fala não faz Direito comparado
e não sabe nada de Direito Comparado. Dizia-se em pleno séc. XX, que “a
Inglaterra nunca teve Direito administrativo”, o que era um disparate, porque a
Inglaterra teve no início do século, que criar normas especiais para a
Administração; há normas de Direito administrativo, precisamente porque foi
preciso regular aquilo que é novo e que corresponde à dimensão «prestadora» da
Administração. Portanto, isto fez com que os dois sistemas [francês e
britânico] se aproximassem.
Podemos
dizer que, quantitativamente o peso da lei pode ser maior no sistema francês do
que no sistema britânico. Mas hoje em dia, não podemos dizer que essa
característica possa parecer desprovida de uma contraposição enquanto tal. Depois,
se entrarem na “London School of Economics” [a Escola de Economia e Ciência
Política de Londres], há uma disciplina de Direito Administrativo desde 1904. Portanto, desde o início do século que
em Inglaterra se estuda Direito administrativo.
A aproximação do sistema britânico ao
sistema francês
Ora
bem, no que respeita aos poderes também vai haver transformações e elas
decorrem de ambos os lados. No sistema britânico, o surgimento das tais leis
que regulam a Administração Pública, vão criar «órgãos especiais» que têm em
determinadas condições definidas na lei, «poderes de autotutela», são os
chamados “tribunals”, os “administrative tribunals”. Chamo à atenção, que estou
a falar em “tribunals” (1) não em “Courts”; estou a falar em órgãos da
Administração não estou a falar em Tribunais. Os “tribunals” não são “Courts”,
são órgãos administrativos especiais que em determinadas matérias; em
determinados domínios gozam de poderes de autotutela das decisões. E portanto,
mesmo no sistema britânico, vão surgir a partir do séc. XX estes órgãos
administrativos especiais que exercem estes poderes de autotutela. É muito
curioso, que o sistema britânico tenha nascido sem sombra de “pecado”; não
tinha tido o “pecado original” do séc. XVIII e XIX, agora no séc. XX vai cair
no mesmo “trauma” do sistema francês, porque estes “tribunals” são realidades
em que se mistura o poder administrativo e o poder judicial. São órgãos
administrativos a quem se atribui, não apenas poderes de autotutela, mas também
poderes dos Tribunais. A Administração passa também a julgar procedimentos…O
sistema britânico tinha nascido tão bem, tinha crescido tão bem, mas depois há
esta realidade promíscua. No fundo, os problemas são os mesmos, mas as
respostas são diferentes. Se pegarem num manual de Direito Administrativo,
estes “tribunals” são caracterizados como “something, between the world of
justice, and the world of Administration”; como qualquer coisa, entre o mundo
da Administração e o mundo da justiça. É o “pecado original” do Direito
administrativo.
Logótipo oficial dos "tribunals" na Grã-Bretanha cuja divisa é: "Dieu et mon droit" / Deus e o meu direito. |
Enquanto
na lógica francesa isso correspondia a uma dimensão genérica…É verdade também,
que as transformações que se deram no sistema francês, por ironia do destino,
se vão manifestar no sistema britânico, enquanto em França os tribunais se vão
transformando em verdadeiros Tribunais. No quadro da lógica do Reino Unido da
Grã-Bretanha, estes poderes de autotutela existem apenas quando a lei os
atribui e em termos limitados e curiosamente, o que vai acontecer nesta fase (nas
fases da evolução do sistema, no Estado Social havia uma fase de
jurisdicionalização) e numa primeira reacção pode dizer-se: -“mas aconteceu o
contrário no sistema britânico”. Não, não aconteceu o contrário, ou seja,
efectivamente no início do século surgiram estes órgãos, mas simultaneamente
vai surgir a ideia de que estes órgãos não têm a última palavra no julgamento
administrativo e vai surgir a ideia de que a última palavra deve ser da
Administração. Se no início dos anos de 1920/30 há alguns problemas no quadro
da realidade britânica, a partir dos anos de 1940/50, torna-se manifestamente
evidente que os “tribunals” não podem ter a última palavra. A última palavra
deve ser dos “lords”.
Há
até uma campanha nos anos de 1970, quando se dá a constitucionalização dos
modelos, e na Grã-Bretanha há uma Constituição material, em que o Governo de
sua majestade vai fazer uma campanha para os órgãos da Administração, dizendo
que a Constituição impõe que o juiz controle a Administração… A ideia é a de
que, a Administração não tem a última palavra, nem mesmo os “tribunals” têm a
última palavra. A última palavra cabe aos Tribunais [“Courts”].
E
portanto, este movimento de jurisdicionalização que acontece em simultâneo na
Grã-Bretanha e na França vai criar esta realidade que introduz a limitação dos
poderes de autotutela e a limitação dos poderes de julgamento. É preciso ter em
atenção, que a passagem do Estado Liberal para o Estado Social no Reino Unido
da Grã-Bretanha trouxe uma aproximação ao sistema francês. Mas, também no
sistema francês onde a exigência é cada vez maior do «princípio da legalidade»
vai levar à afirmação de que, a lei tem de prever e tem de regular, tanto os
poderes de decisão, como os poderes de natureza executiva. Portanto, a essa
maior exigência da legalidade vai por em causa a ideia do «privilégio de
execução prévia» (como vimos na aula passada), nem a Administração tem o
privilégio de execução prévia, apenas tem os poderes que a lei expressamente
lhe atribui; nem os actos administrativos gozam necessariamente de força
coerciva: há uns que não podem gozar, porque por natureza são favoráveis; há
outros que não gozam, porque a lei não permite a sua execução coerciva. Isto
também produziu uma aproximação dos dois sistemas.
Isto vem mostrar como apesar das circunstâncias históricas; apesar da realidade ser diferente de um lado e do outro, há também uma realidade comum que é: faz sentido colocar as mesmas perguntas perante todos os países e portanto, sem se fazer Direito Comparado não se pode saber Direito. É Goethe que diz no seu “Werther”: «Ninguém sabe a sua língua quando não conhece outra língua como a sua. E para saber a sua língua tem que saber outras línguas», isto é mais evidente para o Direito (2). Quem só conhece o seu próprio Direito, não conhece o Direito. É preciso fazer Direito comparado e perceber a lógica das coisas (3).
"Hause of Lords", a Câmara dos Lordes do Parlamento britânico, como os "lords jurisdictions" que têm poderes de supremo tribunal administrativo. |
Isto vem mostrar como apesar das circunstâncias históricas; apesar da realidade ser diferente de um lado e do outro, há também uma realidade comum que é: faz sentido colocar as mesmas perguntas perante todos os países e portanto, sem se fazer Direito Comparado não se pode saber Direito. É Goethe que diz no seu “Werther”: «Ninguém sabe a sua língua quando não conhece outra língua como a sua. E para saber a sua língua tem que saber outras línguas», isto é mais evidente para o Direito (2). Quem só conhece o seu próprio Direito, não conhece o Direito. É preciso fazer Direito comparado e perceber a lógica das coisas (3).
A organização judicial administrativa britânica
e espanhola
Estes
“tribunals” podiam fazer julgamentos mas não eram Tribunais e a última palavra
cabia ao juiz. O facto de a última palavra caber ao juiz, levou à criação de um
meio processual que apreciava as decisões dos “tribunals” e portanto, isso vai
dar origem ao “sofrimento” do contencioso administrativo e levou a que se
caminhasse para uma especialização dos tribunais administrativos. O que
surgiu no Reino de Sua Majestade foi que, na 1ª instância se foram concentrando
os julgamentos dos litígios no “Administrative Court” [Tribunal
Administrativo]. Começou por se chamar, “High Court of Justice” [Alto Tribunal
de Justiça] depois, “Her Majesty's High Court of Justice” [Alto Tribunal
de Justiça de Sua Majestade] e hoje é o “Administrative Court”. E
portanto, hoje em dia, aquela que era a última diferença entre o sistema
francês e o sistema britânico também se esvaneceu, o que não significa que não
tenha havido nenhuma diferença. É que, no quadro da lógica anglo-saxónica só
existe esta especialização ao nível da 1ª instância; ao nível dos tribunais que
vão julgar pela primeira vez os litígios administrativos. Depois, se houver um
recurso para um tribunal superior, aí já será o tribunal comum. Não há
distinção entre os litígios administrativos e os outros litígios, tal como no
topo, o “Lords Jurisdiction” da Câmara dos Lordes do Parlamento, que é o
supremo tribunal britânico e que vão julgar em última instância todos as
decisões. Portanto, há especialização na base mas no topo há unidade. A
Grã-Bretanha tem uma unidade jurisdicional.
Pelo
contrário, no sistema francês, como é o caso da realidade portuguesa;
espanhola; italiana e alemã, temos uma ordem autónoma dos tribunais administrativos
e fiscais, nos termos dos artigos, 209º e seguintes da Constituição da
República Portuguesa, aparecem os Tribunais Administrativos e Fiscais. Isto
significa que - há especialização da base até ao topo -. Mas se esta é a maior
das diferenças nos dias de hoje, o que é facto, é que a realidade tendeu a
esbater muitas das diferenças que existiram no passado. Se olharmos para
Espanha, que teoricamente tem um sistema francês e que acompanhou toda a
evolução dos países latinos; a Espanha em vez de criar um supremo tribunal
administrativo, criou uma Câmara Administrativa para o contencioso
administrativo no Supremo Tribunal de Espanha.
A importância do Direito Administrativo Comparado
Hoje
em dia e nos últimos trinta anos, não há nenhum investigador de Direito
Administrativo que não diga, que é essencial estudar Direito Comparado, porque
é preciso entender, não só como nasceram as nossas instituições, mas como elas
se relacionam e qual a sua evolução e para isso é preciso comparar as
realidades. Curiosamente no início, Otto Mayer, comparou. Ele só escreveu sobre
o Direito Administrativo Alemão, o “Deutsches Verwaltungsrecht”, depois de ter
escrito sobre a teoria do Direito administrativo francês e curiosamente, na
abertura do Direito alemão, ele diz o seguinte: -“Eu se calhar ainda não sei
muito sobre o Direito francês. Se calhar devia estudar mais um bocadinho, mas
está na altura de criar o Direito alemão, seja o que Deus quiser”. Esta ideia
que antes de se escrever alguma coisa, precisamos de fazer Direito Comparado
foi importante no início e é cada vez mais importante. A comparação é
essencial.
Falámos
sobre as grandes reformas que aconteceram nos outros países da Europa no
contencioso administrativo e sobre a tutela cautelar. Isso por um lado, foi o
resultado da influência da União Europeia e por outro lado, deve-se à
existência da comparação. Em Portugal, tivemos nesta Faculdade de Direito da ULisboa, professores
alemães; franceses e espanhóis a discutir o nosso Código do Processo Administrativo e eu estive com eles na Alemanha; na Itália e na França, tal
como os meus colegas estiveram em vários sítios do mundo e é precisamente essa
dimensão comparada que permitiu que, apesar das diferenças (a ideia não é
acabar com as diferenças). O Direito tem que ser diferente, adequado e
adaptar-se a cada sociedade, segundo a máxima de Aristóteles. Temos de entender
quais as bases dessa realidade e temos de entender essa dimensão e o Direito
comparado pode servir como fonte do Direito, porque na União Europeia,
estabelece nas regras do Tribunal de Justiça, que os princípios da UE são, para
além dos «princípios dos tratados», os «princípios comuns» aos diferentes
países. E por portanto, temos que saber quais são os princípios do Direito dos
outros países europeus para saber qual é a norma aplicável.
Para
além dessa dimensão comparada, nos dias de hoje há também uma outra dimensão,
que é a dimensão global. O Direito administrativo global é última invenção…
Estudar Direito global é uma coisa muito importante hoje. Não sei se já
repararam que o Direito Internacional Público, que regula as relações entre
Estados [Estados-nações soberanos] começou recentemente por dizer, que as
normas podiam aplicar-se directamente aos cidadãos e se isso acontecer, essas
normas deixam de ser internacionais [entre Estados-nações] e passam a ser
problemas de Direito administrativo; de Direito constitucional e por aí
adiante. Porque a lógica tradicional é: cada Estado aplica aquilo que negoceia,
e se os outros cumprem ou não é um problema da responsabilidade de cada Estado.
Era a lógica da Administração Pública, mas se, se disser que se aplica aos
cidadãos e que os cidadãos podem por em causa o seu próprio Estado, isto
significa que as questões constitucionais, por exemplo, além de terem uma
dimensão europeia têm uma dimensão global…Há um fenómeno de constitucionalismo
global. O que tem acontecido nos tratados contemporâneos é que surgem muitos
órgãos semelhantes ao antigo Conselho de Estado francês: meio administrativos,
meio judiciais. E esses órgãos têm poderes de julgamento e julgam de acordo com
o Direito Administrativo.
Um
caso famoso, que é o “Caso das Tartarugas e das Gambas” [The Shrimp-Turtle
Case] que ocorreu entre a Índia e os Estados Unidos da América e que resulta da
proibição de importação de gambas pelos EUA e que eram pescadas no Japão, com o
argumento de que os japoneses não protegiam tartarugas. Se este caso fosse
tratado como um caso de Direito internacional, quanto muito havia
responsabilidade civil entre os EUA e a Índia, mas primeiro que o caso fosse
determinado por uma qualquer entidade judicial, acabava por desaparecer o
conflito. Mas se houvesse uma necessidade criada pelos tratados com poderes
para decidir este caso, ele seria decidido de acordo com as regras do Direito
administrativo…A sentença que resolveu este caso, é uma sentença de Direito
Administrativo Global, é um conflito internacional que é resolvido pelas regras
do Direito administrativo e isto é o “pão-nosso de cada dia” nos dias de hoje;
quer no domínio do ambiente, quer no domínio de outras realidades como o
consumo; como na realidade económica no âmbito do “GATT, General Agreement on Tariffs and Trade", o Acordo Geral de Tarifas
e Comércio, há uma série de casos de Direito administrativo e portanto, o último
“grito da moda” é estudar Direito Administrativo.
Há também
outra dimensão que é a dimensão europeia, porque a União Europeia é uma «Comunidade
de Direito Administrativo» e tem também uma Constituição material, mas a UE não
é apenas uma realidade internacional é uma realidade interna, tem uma «ordem jurídica
própria» e essa ordem jurídica prevalece e mistura-se com as ordens jurídicas dos
Estados membros e não é Direito internacional é Direito interno. Aquilo que se passa
no interior da UE é que as suas normas são normas de Direito administrativo. Portanto,
há um fenómeno novo do ponto de vista do Direito administrativo e essa realidade
sem fronteiras é o que tem obrigado a doutrina do Direito administrativo a repensar
fora do quadro tradicional.
Fonte: 3ª aula de Direito Administrativo II; professor doutor Vasco
Pereira da Silva; in - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Transcrito e publicado por: Marco Bemposta, aluno nº 26495.
Anotações
********
(1)
Os "tribunals" são uma espécie de «audiências legais ou judiciais». Existem diversos litígios nos "tribunals" britânicos que têm os seus próprios processos e regras relativamente informais se comparados aos "courts" [Tribunais] e também integram juízes que julgam casos de imigração; asilo e segurança social. In - "Courts and Tribunals Judiciary; Governo britânico; 2016.
(2) O professor doutor Vasco Pereira da Silva faz uma analogia entre a Linguística e o Direito com uma citação de Goethe, da obra literária, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”. O romance é escrito na primeira pessoa e com poucas personagens. Tem uma linguagem rebuscada e muito complicada de ser compreendida. Após a sua primeira publicação em 1774, teria ocorrido na Europa uma onda de suicídios, atribuída à influência do personagem de Goethe, e que foi chamado de «efeito Werther». No entanto, esse impacto do romance sobre o número de suicídios nunca foi demonstrado. Apenas mais recentemente foram realizadas tentativas científicas de examinar a existência desse possível «efeito de Werther». In - “Efeito de Werther”; Ana Filipa Almeida - Análise Psicológica - (2000), 1 (XVIII): 37-51.
A propósito da citação de Goethe, não resisto a acrescentar um
comentário jurídico e simultâneamente linguístico, e que é o seguinte: é
lamentável que nós portugueses tenhamos uma atitude passiva (os que a têm, sobretudo com responsabilidade na cultura ou na política) sobre
a diluição progressiva da nossa Língua Portuguesa, com a imposição atentatória da identidade cultural portuguesa e inconstitucional, como afirma e
escreve o professor Ivo Barroso, com esta adopção ditatorial e anti-científica de um "acordo" pseudo-ortográfico com
que «o órgão superior da Administração Pública», o Governo, “obriga” a comunidade dos seus funcionários a abandonar a escrita
e língua que lhes ensinaram e aprenderam na escola, devido a um “acordo” que
não existe, pois não houve convenção; que nem sequer é “ortográfico”, pois
consiste no oposto da Ortografia que é «escrever correctamente as palavras de
uma língua» e que apenas Portugal insiste em aplicar. A «evolução» ortográfica não pode confundir-se com a actual «degradação ortográfica» e que afecta até a língua falada em certos casos.
Acrescento ainda, que do ponto de vista do Direito, a língua, o idioma, é uma «ferramenta jurídico-interpretativa» e as palavras têm em termos jurídicos grande relevância. Porque
não suprimimos também as letras “inúteis” da língua inglesa, da alemã ou da
francesa? Porque será que os britânicos [por exemplo] membros da “Commonwealth”, mas que segundo
as regras do acordês devia escrever-se talvez: «Comonuelte» ou «Joane Volfegangue vone
Goute» em vez de Johann Wolfgang von
Goethe]. Porque será que outros países mais avançados em termos científicos e no bem-estar social, não copiam este - grande disparate - (para usar uma expressão do professor Vasco Pereira da Silva) que alguns de nós insistem em manter e tolerar quando é verdadeiramente intolerável? Mais argumentos técnicos de peso se podiam acrescentar nesta matéria. Marco Bemposta, aluno do 2º ano da licenciatura em Direito; in - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; 2016.
(3)
O professor doutor Vasco Pereira da Silva avisa que em alguns manuais de Direito Administrativo da
actualidade, é escrito que não há tribunais administrativos na Grã-Bretanha, mas
eles existem. Isto deve-se à falta do Direito Comparado, várias vezes referido em algumas passagens deste texto.
Por: Marco Bemposta, aluno nº 26495.