I. O título da presente publicação pronuncia uma
interpelação que tem levantado crispações doutrinárias quanto à invocabilidade
jurisdicional do famigerado e mediático Princípio da Boa Administração, consagrado
na ordem jurídica pátria pela entrada em vigor do novo Código de Procedimento
Administrativo [doravante “CPA”],
estando fora de horizonte qualquer consensualização na doutrina. Propomo-nos,
numa primeira fase, a explorar sinopticamente as vicissitudes do Princípio da
Boa Administração e, numa última fase, pretendemos, se possível, dar resposta
com completude à questão que serve de monte a esta reflexão.
II. Primeiramente, torna-se imperativo salientar que o
legislador do CPA quis deixar claro que a introdução, no novo Código, do
Princípio da Boa Administração é a primeira de entre as “inovações
significativas” no concernente em matéria de princípios da actividade administrativa,
como resulta do n.º 5 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro,
autorizado pela Lei n.º
42/2014, de 11 de julho, mas mais adiante
o legislador ainda refere que foi sensível aos desidratos da doutrina e do
Direito Comparado ao comtemplar esta solução no CPA – refira-se, neste âmbito,
o legislador foi beber ensinamentos da doutrina italiana, e recorde-se, também
que, ao nível do Direito Comunitário e apesar de estar plasmado com formulação
distinta, o princípio em análise, encontrou “honras de contemplação” no
articulado da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 41º) a
vigorar com carácter vinculativo ex vi
do n.º 1 do artigo 6º do Tratado da União Europeia. Também, com a leitura do
preâmbulo do supramencionado diploma é-nos permitido verificar que o princípio
em apreço, resulta de uma fusão e concretização, no plano infra-constitucional,
dos princípios constitucionais da eficiência, da aproximação dos serviços das
populações e da desburocratização (artigo 267º, n.º 1 da Lei Fundamental).
Entrando na análise do artigo 5º do CPA, vislumbra-se uma certa “irmandade
invertida” com o artigo 10º do CPA de 1991 (sob epígrafe “Princípio da desburocratização
e da eficiência”), na medida em que este artigo 10º tinha uma redacção
semelhante com a do seu homólogo parcial do CPA de 2015 mas numa lógica
legística oposta, isto é, “a celeridade, a economia e a eficiência” das
decisões eram vistas como fruto de uma Administração Pública desburocratizada e
próxima das pessoas, mas agora são ditos como critérios e fins do modo
organizatório da Administração.
A doutrina, antes da entrada em vigor do CPA de 2015,
referia que a Administração está sujeita a um dever de boa administração ou
dever de bem administrar, encontrando-se obrigada a pesquisar sempre a melhor
solução – a solução mais expedita, mais racional, mais económica e mais
eficiente – para o interesse público, contudo, trata-se de um dever jurídico
imperfeito pois inexiste qualquer sanção jurídica associada à inobservância desse
dever. Contudo, a tendência tem sido a da autonomização de certos deveres que
outrora eram considerados integrantes do dever de boa administração, como por
exemplo, o Princípio da Proporcionalidade. Com efeito, o alcance dogmático dado
pela doutrina ao dever de boa administração é muito mais ambicioso daquilo que
é resultante da redacção do artigo 5º do CPA, neste sentido, alguns autores advogam
que a boa administração, por exemplo, impõe um dever de respeito pelos direitos
dos particulares e o dever de protecção e preservação dos bens públicos, ora,
com efeito, é também esteira que alguns avançam no sentido de colocarem o Princípio
da Boa Administração como ponto nevrálgico para um processo de analogia, na
eventualidade da existência de lacunas em qualquer legislação administrativa.
Ora, feita esta abordagem, resta-nos saber se este
princípio, a par de outros que traduzem comandos imperativos do modo de
actuação da Administração, reveste um conteúdo norteador do agir
administrativo, ou se, por outro lado, afigura-se como um princípio programático
que aspira chegar à meta da normatividade. A nossa ver, salvo melhor opinião em
contrário, o Princípio da Boa Administração apresenta-se como um padrão
normativo que vincula a Administração a procurar a melhor solução – um dever –
para o interesse público. Muito embora, a aferição exacta dos critérios de
eficiência, economicidade e celeridade releve para a sede meta-jurídica,
importa-nos aferir como e em que medida esses mesmos critérios estão abrangidos
pelo controlo jurisdicional. Todavia, deste logo, impera frisar que a
arquitectura jurídica do princípio não é condição sine qua non de uma disposição integral por parte do julgador, sob
pena da violação do Princípio da Separação e Interdependência dos Poderes
(artigo 111º da Lei Fundamental e n.º 1 do artigo 3º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos), veja-se o exemplo da situação em que um acto
administrativo seria impugnado judicialmente e cuja fundamentação alicerçaria-se
na violação do Princípio da Boa Administração, no plano do mérito da respectiva
actuação.
III. Aludindo ao que já fora referido supra, é do nosso entender que a
determinabilidade exacta dos critérios enunciados pelo Princípio da Boa
Administração implica juízos que extravasam o papel configurado para o juiz
administrativo cujo raciocínio assenta na análise de matérias factuais e
jurídicas e na aplicação da Lei e do Direito, algo que não se coaduna, e até,
em certa medida, se incompatibiliza com juízos técnicos (não jurídicos) e de
prognose, o que, por conseguinte, levaria que uma intervenção judicial que
tivesse em vista a anulação de um acto em virtude do não cumprimento dos
critérios técnicos estabelecidos no n.º 1 do artigo 5º do CPA, a título
ilustrativo, pelo exíguo grau de celeridade levado a cabo pela actuação da
Administração, conduziria a uma interferência, à margem da Constituição, do
poder judicial na função administrativa, pese embora, um juízo posterior de
resultados seria perfeitamente um juízo jurídico, na medida, em que, por
exemplo, se poderia responder à seguinte questão “este acto não foi célere?” –
o que num juízo técnico seria “em que medida e como é que não foi célere?”, e é
este juízo técnico que importa para, por exemplo, a apreciação da culpa do
serviço no âmbito da responsabilidade civil extracontratual pública da
Administração.
Embora seja complexa a tarefa de tomar uma posição
rígida e coesa neste diferendo doutrinário, por ainda ser um tema muito em
aberto, na nossa opinião, a resposta à paragona de serviu de pano de fundo para
esta exposição tem um sentido muito limitado e quase negativo.
Bibliografia:
CASTRO, João Pedro Marques, Princípios da Boa Administração,
Eficiência e Economicidade, Escola de Direito da Universidade do Minho,
2015, pp. 18 e ss, maxime, pp. 63 e ss.
MACHETE, Rui Chancerelle, Estudos de Direito Público e
Ciência Política, Fundação Oliveira Martins – Centro de Estudos
Administrativos, 1991, pp.123 e ss.
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo,
Vol. I, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 76 e 77.
RAIMUNDO, Miguel Assis - «Os princípios no novo CPA e o princípio da boa
administração, em particular», in Comentários ao Novo Código do Procedimento
Administrativo (Org. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago
Serrão), Lisboa, 2015, pp. 151 e ss, maxime, pp. 163 e ss.
PINHEIRO, Alexandre Sousa, SERRÃO, Tiago, CALDEIRA, Marco, COIMBRA, José
Duarte, Questões Fundamentais para a Aplicação do CPA, Coimbra,
Almedina, 2016, pp. 75 e ss.
Jurisprudência:
Tribunal de Contas: ACÓRDÃO N.º 15/14 – 3.ª Secção – PL
Tiago Miranda
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